Uma Aventura
por Licínia Quitério
Era Inverno e eu perdia-me no jardim-floresta com as miúdas. Levava-as (levavam-me?) a uma aventura, daquelas dos livros que eu lhes comprava. Nesse tempo, a manta morta entre as árvores era o país dos duendes, verdinhos, de grandes gorros e orelhas que neles não cabiam. Tínhamos cuidados para não os pisar. As miúdas levantavam os pezitos e às vezes estatelavam-se e magoavam os joelhos. Nada de importante, nada de choros. Uma aventura é uma aventura e se uma silva nos arranha as pernas é para depois escrevermos uma história emocionante. Bonito, bonito, e as miúdas não esquecem, e eu não esqueço, foi quando ouvimos a conversa das árvores. Com os ouvidos encostados ao grande tronco, podíamos distinguir os gritos, os rugidos das seivas, das cascas. Com a força do vento da véspera, uma árvore mais débil tombara e apoiara-se na outra, velha e forte. Os olhitos das miúdas aumentavam de tamanho, de brilho, e algum susto os perpassava. Fiz com que olhassem para cima, lá muito em cima, onde as ramadas de ambas as árvores se tocavam, se entrelaçavam, se soltavam, numa briga que o vento alimentava. Eram as falas das árvores zangadas que os nossos ouvidos escutavam, maravilhados. Depressa começámos a traduzir os dizeres vegetais, os suspiros, os ais, o ranger de cordas, tronco acima, tronco abaixo.
Nunca mais ouvi uma discussão assim. As miúdas também não. Mas ainda hoje, conhecedoras que somos de outras florestas, de outros ventos, de outras zangas, picadas que fomos por outras silvas, descuidadas que somos a pisar duendes verdinhos, ainda hoje gostamos de falar da aventura das árvores que falam.
Licínia Quitério
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